O meu reflexo no espelho

O banheiro do meu apartamento tem duas lâmpadas. Uma delas ilumina o box com o chuveiro e a outra fica bem próxima do espelho, acima da pia. As duas são brancas, fluorescentes. Não sei quantos watts cada uma possui de potência mas a que está disposta para o box emite uma luz mais fraquinha, enquanto que a que está logo acima do espelho é bem forte. Por força do hábito (e um péssimo hábito) acendemos (desnecessariamente) as duas lâmpadas sempre que vamos usar o banheiro.

Estava escovando os dentes à noite e olhando meu reflexo no espelho. Eu prefiro deixar acesa só a luz mais fraca por achar menos invasiva para a vista. E porque ela esconde minhas imperfeições.

Tudo são jogos de sombras e luz.

Acendi a lâmpada forte do espelho e me olhei refletido nele. Vi ali, escancaradas pela luminosidade fluorescente, todas as imperfeições do meu rosto. As manchas do sol, as espinhas. Os poros abertos demais, os poros entupidos. Os pelos desgrenhados e desalinhados da minha barba irregular, minhas olheiras e as falhas no cabelo causadas pela queda precoce. Sorri. Vi os dentes amarelos e tortos.

Troquei de luz.

Acendi a lâmpada mais fraca e me olhei novamente. Muito do que tinha sido escancarado sumiu ou pelo menos se atenuou. A cor da minha pele, a falha do cabelo, as manchas. Senti conforto.

Enquanto escovava os dentes iluminado pela luz fraca, eu percebi então o que acabara de acontecer. Eu soube.
Quanto mais luz jogamos sobre nós, mais imperfeições vamos notar. E mais incômodo vamos sentir. A luz nos revela tudo aquilo que a sombra esconde. Ela nos tira da penumbra que nos anestesia e nos ilude. Isso dói. Quanto mais luz é jogada, mais sombra se projeta. Mas não são aquelas imperfeições partes de mim? Partes de todos nós? Imperfeições? Por que chamá-las assim? São apenas partes do todo que somos, não?

E essa é a dinâmica que adotamos em nossas vidas. Todos nós. Evitamos iluminar cantos escuros de nossos seres com medo do que vamos encontrar. Reencontrar, porque sabemos o que guardamos ali. Tentamos evitar a todo custo esse enfrentamento, preferimos mentir enquanto nos mantemos no escuro que nos dá a confortável impressão de que o que existe é aquilo que se vê. E quando pouco se vê ou nada, não há nada a se preocupar, não há nada a temer. Certo?

Jogar um farol sobre nossas atitudes e caráter dói. Não queremos nos deparar com aquilo que nos incomoda. Mas isso é necessário.
Viver no escuro é viver na ilusão. É recusar conhecer-se. É se negar o doce e amargo gosto de saber quem se é por completo, sem máscaras ou mentiras. É não permitir que você se encontre com partes que, por mais que não queira, são suas, te compõem. É não se aceitar como se é.

Tudo o que temos deve ser honrado e acolhido. O bom e aquilo que ainda não é bom. Isso que somos nos trouxe até aqui, como somos agora e por isso já merece reverência. Olhem para si com os holofotes da verdade para abraçarem o melhor e o pior que há em si. Até que você percebe que não há cara ou coroa, há apenas a moeda.

E uma moeda que vale muito. Muito mais que ouro. Você, autenticamente.

Parem de se esconder. Encontrem-se. Conheçam-se. Perdoem-se.

Amem-se.

É assim que se reconhece que somos sagrados e divinos.

Escrito por Angelus


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