O Presente
Desci do ônibus e estiquei as costas, estalos estranhos na coluna me lembraram novamente que muitos anos se passaram desde que estive na minha cidade natal. Não que isso tenha saído da minha mente algum dia. Não. Desde que fui embora, é algo que remoo sempre.
Fugi daquela cidade num misto de motivos: em busca de vida melhor, de um recomeço. Talvez querendo apagar mágoas e remorsos. Bom, até que consegui me sair bem na cidade grande sozinho; mas isso era necessariamente uma vida melhor? Sempre fui confuso em questões sobre o certo ou errado…
Caminhei um pouco pelo centro da cidadezinha e estava tudo lá, exatamente como deixei. As lojinhas, a praça, os velhos do xadrez, as árvores abundantes as crianças brincando na rua. As famílias despreocupadas. O espírito da minha terra, minha alma.
Carregava um presente. E era para uma pessoa que foi tanto o motivo da minha ida quanto o motivo da minha volta. Entrei na sorveteria da família dela e a encontrei onde, um dia, costumava ser o lugar de sua mãe.
Atrás do balcão, vi Maria entregando um sorvete de casquinha para uma menina, que correu apressada para junto das amiguinhas numa mesa afastada.
– Gostaria de um Sundae de chocolate, por favor. – pedi, sentando-me numa das cadeiras do balcão.
Ela estava distraída, limpando algo, e sorriu gentilmente ao ouvir minha voz. Só que sua expressão mudara ao me reconhecer. O sorriso se desfez e seus olhos se esbugalharam.
– Felipe? – Ela perguntou pasma.
Abri o sorriso e confirmei. Não vou dizer que Maria era a mesma adolescente que eu deixara para trás, não era. Entretanto, eu também a reconheceria independente de quanto tempo se passasse. Porque ela era minha vida. A vida que deixei para trás sem pensar, num erro imaturo e egoísta.
Depois de frases como “Olha só você”, “Quanto tempo que não nos vemos”, “Você está ótimo”, um silêncio desconfortável se abateu. Era um momento de verdades ditas com os olhos. Encaramo-nos por muito tempo. A conversa tomou outro ritmo em certo momento, falamos como nos saímos como adultos, como vivíamos e como nos sentíamos a respeito do passado. Sim, foi rápido, sincero e certeiro. Quando se cresce, se sabe que não é bom perder muito tempo…
Maria ainda tinha o sorriso mais caloroso do mundo e eu redescobri o quanto a amava.
– É para mim? – Ela perguntou apontado o pacote.
– Sim – respondi entregando o presente.
Ela sorriu e rasgou o embrulho. Era um brinquedo, uma fábrica de sorvete (daquelas simples que você põe o suco e o gelo para triturar) que ela queria muito quando éramos pequenos; não vendia naquela cidade e seus pais nunca conseguiram comprar. Na verdade, nunca teve quase nada lá, só o mais importante…
– Adorei! – ela exclamou com os olhos cheios de lágrimas.
– Quem bom… – respondi contente.
– É o segundo melhor presente que você me deu…
Estranhei franzindo o cenho. Geralmente minha memória era boa, mas não me lembrava de qual outro presente tinha dado à ela.
– Há doze anos, um pouco antes de você partir, não se lembra? – ela indagou, girando a fábrica de chocolate.
Na verdade não. Não me lembrava. Inclinei a cabeça confuso e ela sorriu. Depois chamou a menina que ganhara o sorvete pelo nome. Luiza.
A menina voltou e sentou-se ao meu lado.
– Oi – Ela disse estendendo a mão.
Eu a cumprimentei e devolvi o “oi”. Como é simpática! Pensei.
– Está é minha filha. Luiza, Felipe. Felipe, Luiza. Ela tem onze anos…
Passaram-se alguns segundos de incompreensão, mas ao ver o rosto apreensivo de Maria eu compreendi. E foi como se fosse um soco na cara: o segundo melhor presente que você me deu…
Senti formigamento pelo corpo e um pouco de tontura. Olhei para Maria e ela parecia tanto encabulada quanto feliz ao ver que eu entendera. De repente, todas as questões do passado dissolveram-se no rosto da minha filha. Fui até lá para entregar um presente e acabei ganhando a melhor coisa que um homem pode ter. Era tão fantástico e alucinante, que, em num instante eu já sabia o que era certo ou errado, sabia o que precisava ser feito e ser esquecido, sabia onde eu precisava estar ou não. Sabia o que fazer. Sabia, finalmente, quem eu era.
Eu abracei Luiza e chorei. A menina parecia confusa, mas quem não estava?
Conversamos os três durante muito tempo e foi neste momento que minha antiga angústia acabou. Quando aprendi realmente qual era o significado da vida.
Escrito por Konno